Mecenato e Fruição
Gerd Bornheim
O mecenato ostenta uma rica e variegada história, que se complica, claro está, com o próprio sentido da evolução das artes e de sua função social. Tanto quanto vejo, a figura do mecenas mostra-se pródiga, nos últimos séculos, em duas linhas de base. A primeira encontra o seu perfil na grande personalidade política, que se alça, quase que por uma necessidade inerente ao seu mister, em incentivador das letras, das artes e das ciências. Penso aqui em figuras como Júlio II, em Roma, os Borgia, em Florença, ou Frederico o Grande, na Prússia. O príncipe se faz em exemplo para a sua comunidade, em paradigma pedagógico, ele dita as normas da conduta e do bom gosto, das virtudes e das excelências; por definição, representa a encarnação de um universal concreto, liderança efetiva e modelo para todos os seus súditos. Que este príncipe se cerque das artes e das letras encontra um sentido preciso justamente nesta sua função pedagógica superior - a arte funciona como uma espécie de moldura para o exercício de seu magistério.
Já o outro mecenato instala-se nas antípodas do príncipe; quem o pratica é simplesmente o indivíduo comum, que apresenta um único traço possibilitador do mecenato: a posse de dinheiro. E, por isto mesmo, todas as contas feitas, o novo doador perde-se no anonimato. Este tipo de mecenas tem uma história sem dúvida importante, e é significativo observar que, ao menos em sua versão moderna, ele aparece já nos albores da revolução burguesa, em cuja base está, como se sabe, o desempenho do comerciante. Cedo, em fins da Idade Média, tornou-se freqüente encontrar quadros de grande dimensão, que encimam os altares e representam, por exemplo, a ressureição do Cristo, e que passam a exibir um adendo revelador: pois o olhar distraído do crente ou do contemplador logo tropeça com a reprodução, em tamanho pequeno, de um casal ajoelhado, muito bem vestido, em atitude devota; a miniatura localiza-se quase sempre no canto inferior esquerdo do quadro. Mas: quem é essa gente, que encontra sua medida exata no preciosismo da miniatura ? São os comerciantes que pagaram o artista e doaram a peça à igreja de sua diocese. Inútil querer saber de quem se trata: em regra a história não lhes registra sequer o nome.
Já que os príncipes terminaram por desaparecer, é nesta segunda linha mecênica que a iniciativa passa a concentrar-se. E o que se acentua com o correr do tempo está precisamente no anonimato. Hoje, há muitas grandes empresas que se dedicam à aquisição de obras de arte, e aprazem-se em exibi-las em saguões, salas e corredores de seus imóveis, e mesmo em espaços exclusivos. Observe-se que, nisto tudo, o que se transmuta está no próprio sentido da arte. talvez se possa dizer que hoje topamos com o mecenato da fruição. A situação deixa-se explicar a partir de dois conceitos essenciais para que se entenda a evolução e o sentido da arte. Reduzo aqui o tema a um esquema mínimo. Eis os conceitos: imitação e cópia.
Tomo imitação no sentido em que ela se verificava na grande arte do passado, sempre vinculada àquele conceito referido acima, de universal concreto. São eles: os deuses e as deusas, os reis e os heróis, o Cristo e a Virgem, os santos e novamente os reis, príncipes e heróis. A arte apresentava, então, como que um caráter vertical, que estabelecia um vínculo entre a singularidade que constitui o comum dos mortais e a pedagogia do universal concreto. Por muito tempo, a beleza foi compreendida como splendor Veritas, o esplendor da Verdade daquela esfera dos universais que encontravam o seu esteio último na própria realidade divina. O que deveria ser visto estava sempre nesta realidade divina ou em suas seqüelas, e a arte, como que distraída, era apenas o meio que tornava a seriedade das coisas divinas presentes aos olhos mortais. Cabe até afirmar que nem se tratava tanto de ver a arte, e sim aquilo que ela transmitia.
Com a revolução burguesa, o conceito de imitação perde paulatinamente a sua vigência, substituído que passa a ser por este outro conceito - sempre tão depreciado pela tradição -, o de cópia. A diferença está em que agora suprime-se exatamente aquela esfera dos universais. E a cópia pretende transmitir nada mais do que as aparências deste mundo, em sua plena cidadania, na imanência de sua horizontalidade - a sensualidade, por exemplo, de algumas maçãs lançadas a esmo sobre uma mesa. A natureza já não esconde a linguagem cifrada do próprio Deus, como em Da Vinci, ou Bach, ou Newton; ela é apenas indicativa de si própria. A partir de então, as técnicas continuariam invadindo novos itinerários, no afã sempre mais transparente de a arte querer ser tão-só auto-referencial, alojada no comprazimento da arte por ela mesma: são os seus processos internos que agora a interessam, a exploração da forma em si mesma, da cor em sua plasticidade.
Já por aí se vislumbra que as coordenadas em que se desdobra a arte de nossos dias se revelam plenamente compatíveis com aquele mecenato anônimo referido. Tudo parece limitar-se hodiernamente a um ato de fruição, muitas vezes até discreto, de algo apenas percebido com o canto dos olhos. Mas aos poucos é toda uma pedagogia que se desenvolve; gradualmente, o olhar se torna mais exigente, descobre a forma e a cor em si mesmas. A arte já não está mais a serviço dos ditos universais, ela passa a constituir como que uma dimensão do meu corpo, o olhar se deixa compor ao nível da esteticidade pura. E aos poucos, até a cidade muda as suas feições. A fruição é antes de tudo esse bastar-se da satisfação estética em si mesma, independentemente inclusive do que sejam as postulações da beleza ou das harmonias de tipo tradicional.
E nos entanto, a fruição é apenas a metade da experiência global da arte. Pois existe o outro lado da medalha, para o qual a fruição é apenas uma porta de acesso: penso na criação. A fruição como que leva ao fascínio e à possível experiência da criatividade, nem que seja por alguma razão meramente negativa, como a de superar a tendência à robotização universal que assola a sociedade de hoje nos mínimos detalhes de nosso comportamento. O certo é que, já a partir de pensadores do porte de Nietzsche e Marx, nunca se realçou tanto a interpretação da realidade humana como sendo essencialmente criativa. Em verdade, fruição e criação são termos que encontram um no outro a sua razão de ser. E toda fruição já inaugura um processo de recriação. © 1998 Gerd Bornheim
Mecenato e Fluição
Marcadores: Assunto Interessante | author: PaulloGalvãoPosts Relacionados:
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